Reconhecimento facial: a banalização de uma tecnologia controversa

23/04/2020

Texto de Helena Martins, integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes. Publicado originalmente em 22 de abril de 2020.

Em 2019, uma tecnologia que afeta a privacidade dos cidadãos e tem potencial discriminatório ganhou força no Brasil: o reconhecimento facial. Ela funciona a partir da marcação de pontos na face de uma pessoa; por meio de algoritmos, é criado um mapa facial que, ao ser escaneado, pode reconhecer o emparelhamento das características, independentemente da posição em que a pessoa estiver. Esse método de identificação biométrica pode operar mesmo sem o conhecimento de quem tem o seu rosto analisado pelo sistema, permitindo fazer varreduras em massa de pessoas que passaram apenas segundos diante de uma câmera. Erros, contudo, são recorrentes. Pesquisa feita pela Universidade de Essex, no Reino Unido, analisou 42 casos de reconhecimento facial e concluiu que houve acerto em apenas oito deles, menos de 20%.

Ainda em janeiro de 2019, uma comitiva com deputados federais e senadores eleitos do PSL, então alinhados a Jair Bolsonaro, viajaram à China a fim de conhecer o sistema de monitoramento e reconhecimento facial em locais públicos instalado no país. No mês seguinte, o carnaval foi palco de experimentos com essa tecnologia. No Rio de Janeiro, foram instaladas 28 câmeras em Copacabana para reconhecer carros roubados e pessoas que estivessem com mandados de prisão expedidos, informou o governo estadual. O sistema comparava os rostos das pessoas filmadas com fotos de procurados e disparava um alarme quando encontrava compatibilidade. Quatro pessoas com mandado de prisão em aberto foram presas, segundo a Polícia Militar do Rio. Um adolescente que estaria cumprindo medida socioeducativa também foi apreendido e um carro roubado foi recuperado. Em Salvador, um foragido foi preso. No primeiro caso, o sistema foi desenvolvido pela Oi. No segundo, pela chinesa Huawei.

Na Paraíba, houve teste durante aquele que é considerado o “maior São João do mundo”, na cidade de Campina Grande. A Medow Entertainment, empresa organizadora do evento, contratou a plataforma digital Facewatch, que usou câmeras de reconhecimento facial em todas as entradas do Parque do Povo durante os 31 dias de festa. A operadora Brisanet também participou da operação. Foram instaladas 265 câmeras capazes de encontrar uma pessoa com um zoom de até dois quilômetros de distância, noticiou a Secretaria de Segurança Pública. Soldado da Polícia Militar da Paraíba, Jimmy Felipe, também Gerente de Projetos do órgão, disse à reportagem que mais de 800 mil rostos foram gravados. Desse total, “300 pessoas foram cadastradas. Delas, 12 foram presas. Uma só era irmã gêmea [de um procurado], o que mostra que o sistema foi suficiente. Não foram feitos armazenamentos de pessoas que não estavam nessa base de dados ou que não tinham nenhum tipo de envolvimento, nenhuma busca na polícia”, afirma. Felipe acrescenta que “os dados que não tiveram correlação aos procurados foram descartados após 24h”.

Ao longo do ano, a implantação de sistemas de identificação biométrica foi popularizada. Smartphones, academias, portarias de prédios públicos e privados passaram a coletar informações a partir dessa técnica ou mesmo a condicionar o acesso a serviços à entrega delas. Até igrejas têm utilizado reconhecimento facial para controlar os fiéis, noticiou a Agência Pública. Advogada e pesquisadora do programa de direitos digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Bárbara Simões demonstra preocupação com o avanço da tecnologia, “tendo em vista o desafio que isso significa para a garantia de direitos como o direito à privacidade ou à proteção dos dados pessoais”.

O instituto começou a trabalhar com o tema em 2018, ano em que entrou com ação contra a empresa Via Quatro, concessionária da Linha 4 – Amarela do metrô da cidade de São Paulo, porque ela estava coletando dados de som e imagem dos usuários do transporte sem que estes fossem informados ou expressassem consentimento. Telas foram instaladas nas plataformas de embarque e desembarque da linha amarela que exibiam publicidade e registravam, por meio de câmeras, a reação dos passageiros. A Justiça considerou a prática ilegal e determinou a suspensão da coleta. Em 2019, questões desse tipo foram mais recorrentes. Bárbara Simões relata que o Idec questionou o reconhecimento facial efetivado pela Hering, Carrefour, Itaú, Quot, 99 e até mesmo Dataprev. “É um tema que foi crescendo muito ao longo do ano passado, porque a prática se tornou cada vez mais pulverizada”, avalia.

Na Hering, sistemas apresentados como forma de desenvolver uma publicidade mais personalizada monitoram a reação de clientes às roupas em uma “loja conceito”. Para o Idec, o monitoramento das pessoas sem que estas o saibam ou tenham autorizado pode configurar prática abusiva. A entidade solicitou esclarecimentos sobre coleta e tratamento de dados, sobre o que é feito com os dados coletados e com quem são compartilhados. Questionamentos semelhantes foram feitos ao Carrefour. Na também apresentada como “loja conceito” do supermercado, os clientes precisam selecionar entre o reconhecimento facial ou a leitura de QR Code. Os itens selecionados pelos consumidores são identificados por frequência de rádio e, se confirmada a compra, os valores são descontados diretamente do cartão de crédito do cliente, detalha a notificação do Idec.

No caso da Dataprev, empresa pública brasileira responsável pela segurança dos dados e informações previdenciárias, o Idec requereu a suspensão da licitação para aquisição de tecnologia de reconhecimento facial e impressão digital até que fosse sanado o sistemático vazamento de dados dos beneficiários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em nota em resposta ao instituto, a Dataprev defendeu a infraestrutura de tecnologia que possui para garantir os níveis necessários de segurança às informações de cidadãos e defendeu também a continuidade do processo licitatório para a contratação de solução de multibiometria, que, de acordo com o órgão, vai facilitar o cumprimento da exigência anual de prova de vida do INSS.

Facilidades e segurança também foram apresentadas pelas demais empresas – Itaú, Quod e 99 – ao anunciarem a adoção da tecnologia. A extensão do uso, contudo, preocupa. “Toda a questão da tecnologia de reconhecimento facial é que ela é capaz de coletar um dado biométrico de determinada pessoa, extrair suas características e, com base nisso, definir um perfil ou chegar à conclusão de quem ela é. Isso é muito arriscado do ponto de vista da segurança e da privacidade. Fora isso, há uma preocupação com a discriminação das pessoas, considerando que esses sistemas não são bem treinados, pois são treinados sobretudo por pessoas brancas, do sexo masculino, que trabalham a partir de uma base de dados que em geral não é composta por pessoas negras, asiáticas. Estas não são facilmente reconhecidas e podem sofrer constrangimentos”, explica Bárbara Simões.

Leia o texto completo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil.

Imagem original CC-By (Abbyssus).